quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Um Amigo Para Jerry

Uns olham vitrines, Jerry conversa com manequins. Outros procuram a sombra, Jerry é a própria. Jerry tem 8 anos, vive numa outra dimensão, onde desconfia-se que só deuses habitam. Para Jerry, o óbvio são “arranjos inusitados”. Jerry se basta, aparentemente é feliz no impenetrável mundo seu. Jerry desenha e faz esculturas de massinhas. Também escreve. Seu pálido olhar, quando emite alguma luz, tem a força da energia gasta de uma pequena pilha Ray-O-Vac. Certo dia, Jerry desenhou um labirinto repleto de saídas e uma casa vazia de entradas.
Não importa, para ele tudo é simples, e raro. Ora, para que serve um labirinto sem saídas? Onde é que está a graça? Uma casa vazia de entradas é uma casa vazia de saídas. É uma prisão. “Simples como a vida deve ser”.

Tenho uma inveja saudável do mundo de Jerry, e tento aprender com ele; descobrir o que é essa tal felicidade que cabe em si mesma; mas não consigo, não passo de um comum. No planeta de Jerry habita a luz, protegendo-o de nossas trevas. É para poucos. O mundo em que vivemos é uma fratura exposta como uma melancia partida ao meio, uma escuridão clara de egos inchados e mal iluminados. E mal-resolvidos, também. Do olhar dissimulado cospe-se o fogo da boca que lhe sorri.

O sucesso a qualquer preço, a honra em 3 vezes, sem entrada e sem juros. O riso é de ocasião, vai de acordo com o gosto e o interesse do freguês. Ri-se das próprias piadas, tudo se articula e se macula. Amigos, só se for para falar mal; convite, só se for para se dar bem. “O inferno são os outros”. Existem coisas que o dinheiro compra”; para as outras, nem com o MasterCard. Não se tem notícias de que o Carrefour esteja vendendo índole no peso nem caráter em caixinhas.


Jerry é autista, sua mãe é cartomante, seu pai é motorista e sua irmã, professora de física. Ironicamente o pai não consegue transportá-lo para outros mundos, a mãe não sabe como prever-lhe o futuro e a irmã não resolve essa equação. Jerry resolve a questão dos três, embaralhando o invisível. Mostrando-lhes que “viaja” muito bem, quando, com suas massinhas, dá vida a lagartixas de duas bocas e cinco pernas, ignora o presente porque já nasceu no futuro, suas vacas voam e seus oceanos são vermelhos de sangue-azul.

Esta semana, Jerry perdeu seu melhor amigo, a quem ele ouvia e era ouvido. Bastava um gesto, um olhar, um piscar de olhos. Keko, seu amigo pequenês, morreu atropelado entristecendo o trânsito, em frente à sua casa. Jerry pegou seu amigo nos braços, sorriu. Algo dizia que aquele sorriso não era de alegria pela morte de keko. Que luz é essa que iluminou o sorriso de Jerry? De qual dimensão virá seu novo amigo?


casadasletras@gmail.com

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Íris

Não poderia privá-los deste post que um dia foi enviado, vai com o nome da personagem trocado; vai com o nome de Íris, íris branca, a flor da esperança.

"Fiquei feliz, Íris, com o seu contato. Foi como uma pancada nesse pobre coração. Porque nesse hiato que se estende, nada mais fiz do que fugir de você; um silêncio calculado e sofrido. Tudo por não querer interferir no seu destino nem atrapalhar a sua felicidade. Embora acredite que o que tem de ser, será. Não me sinto em condições de ser seu amigo, embora você possa contar comigo para o que você quiser. Amo o impossível, Íris; amo você. E o que é pior: cada vez mais. Foi bom, mas seu reaparecimento só aprofundou uma grande cratera existente em mim. Deixe eu ficar assim, de certa forma é meu alimento. Gosto, adoro e amo você, Íris; assim será eternamente, disso eu já sei. Me desculpe a metáfora, que é o que eu nem Deus desejam, mas é para que você tenha a real e a mais profunda noção do quanto gosto de você: se algo lhe acontecesse um dia, que lhe impossibilitasse para a vida, e a mim só restasse cuidar de você para todo o sempre, faria com tal zelo como se venera uma rainha. Desculpe esse meu exagero, mas queria dizer e queria que você soubesse. Até nunca mais."

casadasletras@gmail.com

terça-feira, 9 de junho de 2009

Aninha, Uma Pernambucana

Na canção As Cores de Abril, Vinícius de Moraes diz assim:
"As cores de abril
Os ares de anil
O mundo se abriu em flor
E pássaros mil
Nas flores de abril
Voando e fazendo amor".
Numa manhã de abril, sob um Sol banhado em ouro , o mundo também se abriu em flor e borboletas; uma revoada de belas borboletas, para ser mais exato. Reinando entre elas, Aninha. Ah, Aninha, se você visse como eu vi você: uma linda borboleta morena entre um rosário de borboletas amarelas. Aninha, a DiAna das borboletas, a mais bela de todas. Aninha é Cássia, Cássia é La Cássia; para mim é Ana, é Aninha. Não sei o porquê, mas desde que a conheci, é assim que lhe chamo, é só assim que sei lhe chamar. Talvez haja aí um certo sentido exclusivista, algo carinhoso, algum sentido de posse, alguma coisa que um dia vou saber. Talvez seja pelo seu jeito de menina, pela sua fala dengosa, pelo seu jeito de Deusa da beleza, pela pessoa bacAna que ela é. Não sei, só sei que os ares também eram de anil, pois naquela manhã o céu abençoava a vida com o seu azul. E sob esse céu azul, reinava a minha rainha, a minha deusa, a minha DiAna das borboletas. Ah, Aninha, se você visse como eu vejo você.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Amor eterno amor

Ao abrir a porta do apartamento, um quarto-e-sala, Fred deparou-se com a mesa, como sempre, muito bem posta. Compondo o almoço, embaixo do prato, um bilhete em forma de coração: “Era o que tinha, desculpe-me se não fiz melhor”. Fred procurou a vizinha do 202: “A senhora viu Bia?” Foi embora hoje de manhã”. Acabava-se assim um amor adolescente. “Será? E aquele bilhete em forma de coração? Será que não era só uma fuga do amor?”, pensou Fred. Estava a dois mil quilômetros de onde viera com Bia. Agora estava só! Caiu em prantos, gritando para dentro do travesseiro: “Eu quero a minha Bia!” .
Bia era linda, bela e triste. Não agüentou as traições e a desatenção de Fred.

Conheceram-se quando ele tinha 15 e ela 16 anos. Um namoro que os pais dela não queriam. Os pais de Fred não tinham dinheiro, era Bia quem bancava tudo: cinema, bailes e boates. Dividiam a Coca-Cola e o cachorro-quente, chuva, sereno e piubas de cigarro, as brigas de casa e a cola no colégio. Acho até que foram eles que inventaram a expressão “entre tapas e beijos”. Encontravam-se pela manhã, à tarde e à noite. Como era boa a vida sem celular e Internet. Explodindo em hormônios,transaram em lugares que nem Deus duvida, pois transaram até na Casa de Dele, na sacristia.

Já perto dos 18 e 19 anos, cada vez mais apaixonados e querendo descobrir o mundo,
juntaram uns trocados e resolveram fugir. Queriam livrar-se dos pais e daquela vidinha do interior. Os dois se bastavam. Antes do embarque, na rodoviária, compraram dois confeitos que vinham com uma aliança, cada. Já dentro do ônibus, fizeram a troca da bijuteria , exibiram o dedo anular para os passageiros e foram até aplaudidos. Durou seis meses.
Fred voltou para a cidadezinha, queria reconquistar sua Bia, que para sua surpresa não estava lá. Ninguém sabia o destino de Bia; segredo que só os pais dela sabiam, foram eles que decidiram afastá-la dali. Fred foi embora do lugar.

Vinte anos depois, “numa tarde de um domingo azul”, o telefone toca: “Alô!” “Quero falar com Fred”. “É ele!” “Tudo bem?” “Tudo. Quem é?” “Bia!” “...” “Fred?” “...” Alô, Fred?” “Oi, Bia!” Estavam a 1.500 quilômetros um do outro, ambos casados, com filhos. Bia falou que queria vê-lo, acertaram o dia que ela viria. “Como será que ela está? Como estará a minha Bia?” Fred tinha receio, pois sabia que fora da cabeça a imagem não se congela no tempo. Arranjou um apartamento para ela ficar. Chegou o dia, foi esperá-la.
Não conseguiam olhar-se nos olhos. Fred lembrou-se da letra de uma música que diz
“nossa linda juventude, página de um livro bom...” Vinte anos depois, o roteiro de um filme inacabado pedia seu final. Foram a um restaurante. Não conseguiam falar, queriam ficar só se olhando. Havia ternura e uma pergunta no ar: por que a vida quis assim? Duas da manhã, Fred foi deixá-la no apartamento. “Não vai subir?” “Não, você é uma mulher casada”. “Eu sempre fui uma mulher casada!”, disse Bia, mostrando-lhe aquela aliança do confeito.

casadasletras@gmail.com

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Fora dos Trilhos

E foi assim: sentimentos despedaçados por todos os lados, projetos compartilhados num futuro que esbagaçou-se alí, no trem do amor descarrilado que o destino não quis apitar na próxima estação. Um coração desengatou-se do outro. Mas restava a lembrança do amor ainda nos trilhos, do vagão alegre que só trepidava nas horas mais felizes, pintado com o calor do vinho, ao som de Fuck this shit, de Belle & Sebastian.

Tinha de recompor o vagão; não foi fácil mas assim o fez. No primeiro teste, notou que as rodas da paixão ficaram meio tortas, cambaleantes como um andar de criança; que o apito anunciando um amor igual aquele soou fraco, era um sopro. Chegaria à próxima estação? Ou, pior, havia próxima estação? Gostava daquele jeito Madame Bovary de ser: meio fútil, meio inteligente; meio puta, meio senhora; meio desinteressada, absolutamente interesseira; meio racional mas totalmente sonhadora. E definitamente linda.

Norton Ferreira
casadasletras@gmail.com

Morre o Circo, Vai-se Uma Infância

O leão está faminto, atônito e abandonado. Sua juba já não ostenta mais o penteado digno de um rei. Das lembranças do picadeiro, o silêncio do aplauso borra o sorriso do palhaço. O circo está fechando, e com ele arreia-se de vez a lona colorida da minha infância. A cada dia, a notícia: mais um circo fechou; mais um circo tombou o mastro de uma bandeira que não tremulava mais. Leões, macacos, girafas e elefantes estão sendo largados pelo caminho. Não sabem o que fazer. Olham para nós como crianças abandonadas, querendo uma explicação, querendo mais que comida: querendo saber onde foi que a alegria errou.
Nem ao menos lhes deixaram o endereço do Retiro dos Artistas.

Pelas ruas, o palhaço cantava: “Ô, raia o sol, suspende a lua!” Em coro, respondíamos: “Olha o palhaço no meio da rua!” “Ô raia o sol, suspende a lua!” “Olha o palhaço no meio da rua”.”Hoje tem espetáculo?” “Tem, sim senhor!” “O palhaço o que é?” “É ladrão de mulher!” “O palhaço o que é?” “É ladrão de mulher!” Ô, raia o sol!”... Fazendo o coral, ganhávamos as entradas para o espetáculo. Era um desses circos mambembes, sem a empanada de cima, que andam caçando níqueis pelas cidades do interior. O circo era muito ruim, mas o que a gente queria mesmo era ver as mirradas bailarinas dançando rumba.

Tive uma infância povoada de circo. Circo, cinema, futebol e gibi. Certa vez, pulei a cerca do Ringle Circus. Era um grande circo: lindas trapezistas, globo da morte, atirador de facas, cachorros que jogavam bola, palhaços geniais, mágicos fantásticos e um apresentador – de fraque e cartola – que dizia: “Reeeeesspeitável público!” Sem dinheiro, pulei a cerca do circo, quando fui pego pelo braço por um vigia. Pedi para sair por onde havia entrado. Ele disse que não, que eu tinha que sair pela frente, que era para tomar uma vaia dos que estavam lá fora. Esse era o castigo. Era noite. No caminho, de uma tenda saiu uma voz: “O que foi?” “Peguei esse moleque pulando a cerca”. “Traga ele aqui”. “Por que você pulou?” “Porque minha mãe não tinha dinheiro, e eu queria assistir”. “Quer assistir?” “Quero”. “Então pendure esse fiteiro no pescoço e vá vender essas balas para mim”. E agora?, pensei, o que meus colegas vão dizer de mim? A vergonha não falou mais alto: fui. Queria assistir, e o circo me queria lá dentro.

Terminado o espetáculo, fui prestar contas, vendi um pirulito Zorro e um chiclete
Adams. “Só isso?” “Você pensa que eu não vi você parado?” "Que você passou o tempo todo assistindo ao espetáculo?” “A senhora estava linda. Era a mais bonita de todas elas”, respondi.
Ganhei um beijo na face e a promessa: “Enquanto o circo estiver aqui, você é meu convidado. Todos os dias.”

Norton Ferreira
casadasletras@gamil.com

domingo, 26 de abril de 2009

Sonho de Valsa

“Se alguém de repente lhe oferecer flores, isso é Impulse”. Gosto desta frase, é um bom trocadilho, mas não sei por que iniciei esta viagem com ela. Talvez, ao chegar ao destino, encontre a razão. Divide-se casa, emprestam-se livros, compartilham-se discos, reparte-se comida, emprestam-se carros. Mas, se ela nunca dividiu um Sonho de Valsa com você, começo a duvidar dessa relação.
Não vale Chokito, Batom, Diamante Negro ou Prestígio, tem de ser Sonho de Valsa.

Há estudos que dizem que o prazer que uma mulher sente, ao comer um chocolate, é semelhante a um orgasmo. Uma festa no cérebro provocada pela cópula luxuriosa entre a serotonina e a endorfina. Coisa que nem toda mulher está disposta a dividir com seu amado, em se tratando de um Sonho de Valsa. É um prazer só seu, e você seria um intruso; você teria que ser mais que um reles penetra para poder gozar essa valsa.

Algumas mulheres ficam em êxtase, zonzas, zarolhas diante de um Sonho de Valsa. Que magia é essa, que mistério é esse?. Há uma música de Alceu Valença, que diz “comemos juntos Sonhos de Valsa...” Veja o quanto há de cumplicidade nesta frase. Acho a cumplicidade uma coisa bacana, calma, é o amor suspenso e amarrado nos laços da ternura, do bem-querer, do querer ser só um; ao sabor dos vendavais da paixão. Quem junto comeu um Sonho de Valsa, come até o pão que o Lula amassou e vai amassar mais ainda.

Dividir um Sonho de Valsa é a mais singela e honesta declaração de amor, acredite. Estou falando em dividir, e não em ter dois e dar um. Não tem graça. O que vale é a mordida que ela deixa você dar no pedacinho dela. O resto é varejo, é conseqüência, o fogo desceu, o sino tocou, a igreja se abriu, os anjos disseram amém; só lhe resta ajoelhar-se e não pedir perdão, você tem direito ao pecado não-permitido.

O ideal é que você não peça, que não force a barra; deixe o amor brotar naturalmente de dentro de um Sonho de Valsa. Quando isso acontecer, concedo-lhe o direito de rolar uma lágrima, que ela desça até à sua boca, que o gosto salgado invada os lábios da sua amada. Ela irá entender, ela irá gostar: porque, se ela repartiu um Sonho de Valsa com você, é porque ela também quer seu sal. É a cumplicidade da qual falei. Deixe acontecer. Deixe que seja por "Impulse."

Norton Ferreira
casadasletras@gmail.com

domingo, 12 de abril de 2009

Talvez

Comprei um arco-íris novinho em folha. Pintei meu céu com as cores de uma felicidade que tomei emprestada. Roubei flores que não pediram para ser roubadas. As partículas no ar seguravam lágrimas condensadas. Tudo porque acreditei num beija-flor que me disse haver no final do arco-íris um pote de ouro; que se eu tivesse sorte, uma bela fada me deixaria ver seu rosto. Não havia ouro, só um pote vazio. Era só isso o que eu queria; a vida inteira, era só o que eu queria: um pote mágico, vazio de inveja, vazio de soberba, vazio de pecados, vazio de nada. Um pote apenas cheio si, cinza brilhante como prata, onde joguei minha falsa alegria, os amores amados negados, a esperança tardia, o encardido olhar do horizonte morrido. Enterrei-o novamente, com calma, com grãos de areia peneirados entre os dedos. Na cabeça, um filme; no vazio, um coração.

A fada apareceu. Zombou do meu céu, ridicularizou meu arco-íris, matou as flores mortas e quebrou meu pote cheio de vazio de mim. Outra fada apareceu, num outro lugar e tempo, que deixou-me ver seu rosto, que me presenteou com o mais belo sorriso, que vinha de ternura embalando seu olhar, que viva rosa vermelha me deu, sem espinho. Rosa comprada na noite, dos vendedores que perambulam por mesas e ilusões. Mas... cadê o espinho? No meu pote enterrei meu peito, que também quer seu espinho, que fará jorrar meu sangue, vermelho de amor e dor. A rosa exalou você, que é linda em rosa, botão e flor. Uma redoma, em meu coração, lhe conservará para sempre.

Era para ser um poema, mas, agora, algo me pede uma despedida. Que seja. Sinto que tenho de ir, mesmo sem saber para onde, mas tenho de ir; e jamais saberei se você virá. Na verdade, foi tão real que nem sei se você existiu. Não importa. Minha alma precisava desse fantasma, precisa dessa companhia.
Agarro-me a Drummond: “O que é ser feliz? O que eu queria ontem, o que eu quero hoje, ou que eu quero amanhã”? Talvez haja aí uma esperança, um buraco negro; mas é uma esperança, que meu bom fantasma não irá espantá-la.
Não vou dizer adeus, não vou dizer até logo, não tenho o tempo preso em minhas mãos. Tudo é talvez. Talvez eu nem escreva mais neste Sanatório, talvez. Só para você não saber como estou, talvez. Talvez eu escreva uma crônica por dia, só para dizer o que você já sabe, talvez. “Te ver, e não te querer, é improvável, é impossível”. Talvez.

Norton Ferreira
casadasletras@gmail.com


sábado, 14 de março de 2009

Renato Russo

Neste 11 de outubro completam-se onze anos que Renato Russo nos deixou.
Esta pequena crônica é para reforçar minha crença na paz e no amor. Fazer o quê?...
Tem coisa pior que um mundo só de paz e amor? Viver sem um espinho no olho e sem o prazer de pisar num caco de vidro? Mas é só para reforçar uma crença que não existe, na verdade; o mundo é dual. A noite pode cair numa tarde. Ou não, como diria Caetano.
Renato era doidamente lírico, acidamente romântico. Seu olhar era a ponta de sua lança. Que feria quando sangrava verdades. Seu escuro era claro demais.
Dos seus mergulhos, voltava à tona sem arranhões, embora dilacerado. Com a alma implorando justiça e o espírito, um pouco de paz. Ouvindo Renato, hoje, ainda vejo a juventude andando em trevas; nas trevas do efêmero, na burrice do agora, nos valores epidérmicos.
“Só os iluministas vêm ao mundo com a mística dos iluminados. Renato mergulhou nos oceanos da alma, viu o lodo, e trouxe pérolas. No seu inferno moravam anjos.”
Renato decifrou gestos, quando tudo era só intenção. Seu brilho deixou nus o ódio, a inveja, a mentira, a injustiça e a traição; e vestiu de luz a amizade, a justiça, o amor, a bondade, o companheirismo, a fé, a compreensão, a liberdade, o respeito e a paz.
Renato Russo era metalingüístico, retórico, realista sonhador, gostava de parábolas. Mas era simples. E só os simples podem ser simples. Não é fácil enxergar o óbvio.
E, através dele, enxergamos esta bela frase de Oswald de Andrade: “O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus”. Veja o que ele diz na música
L’avventura: “O sol é um só, mas quem sabe são duas manhãs?... Em Soul Parfisal, está lá: “Pecado é provocar desejo e depois renunciar”. Mas, na música A Via Láctea, a simplicidade foi desconcertante: “Obrigado por pensar em mim”. Pare um pouco e pense,veja quanta generosidade: “Obrigado por pensar em mim”.
Na verdade, Renato não era iluminista nem tampouco iluminado. Era a luz.”

Norton Ferreira

Mulher de Verdade

Deusas de carne-e-osso. Mais carne, é verdade, mas deusas. Lindas. Mulher-mulher, com jeito, cara, corpo e as imperfeições que toda mulher deveria ter. Deveria, porque estes dias escravizantes já não lhes permitem mais.

Foi paixão ao primeiro banho, quando vi minhas gordinhas, baixinhas e altinhas, nos anúncios do sabonete Dove; sabonete e loção, que levam o nome de Sistema Firmador Dove. Em meio a podriqueira na qual uma parte da publicidade brasileira se meteu, essa campanha, criada pela agência Ogilvy, nos presenteia com uma idéia limpa, bonita e cheirosa; com gente de verdade e que foge dos surrados e previsíveis trocadilhos de imagens. A Veja desta semana carimba meu encantamento com essas meninas, dando destaque para as, agora, modelos Camila Sebastiane e as irmãs Bruna e Bianca Fiorillo, na Seção Gente. Camila é a baixinha, meu xodó: 1,58 metro, 64 quilos, 37 anos, casada e arquiteta. Lembra a Juliana Paes, só que mais bonita. E de carne-e-osso, repito. Numa de suas músicas, Zeca Baleiro diz "baby, sua beleza não precisa de salão de beleza, sua beleza não precisa de salão".

A frase "a propaganda acabou com o amor", de Arnaldo Jabor, é apenas uma frase questionável de um ex-diretor de cinema mais questionável ainda. O fato é que a mulher de verdade está sumindo; sumindo porque a moda, a mídia, o esposo, o namorado, os amigos e o mercado de trabalho dizem que ela tem de sumir. O mundo cobra muito e as mulheres se cobram demais. A não ser o padrão básico, impõe-se um padrão para aquilo que não tem padrão: o ser humano. Desligue a TV e vá ler um livro, sugere a MTV.

Da mulher quero também a ferida e o esparadrapo. O gozo e o esporro. A cobrança e a escravidão não é só uma coisa de corpo, digamos assim, mas de cheiro também. Até o cheiro vaginal e natural estão querendo sumir com ele. Por esses dias, a Lycra estará lançando a lingerie aromatizada: inicialmente são três tipos de aromas, que, dizem eles, "buscam estimular os sentidos com sensações de tranqüilidade, equilíbrio e energia". Sinceramente, dona Lycra, não cheirei e não aprovei. Ora, onde já se viu falar em tranqüilidade e equilíbrio num lugar desses? Energia? Tem energia para içar um submarino russo, lady Lycra. Levando-se em conta que o órgão sexual mais importante é o nariz, lamento, minha amiga, se você cair nessa, pois é assim que o mundo vai sumindo com você. Até com o seu cheiro.

Os anúncios do sabonete Dove, além de serem um belo momento da publicidade brasileira, quebram paradigmas, devolvem o lirismo que estava faltando a homens e mulheres, e a crença na possibilidade de serem felizes do jeito que são: gente de verdade. E gente de verdade ganha e perde peso, tem celulite e queda de cabelo, tem bunda caída e bunda arrebitada, e tudo o mais que você já sabe mas parece não saber.

Parece não saber que por trás de uma fachada existe inteligência, dignidade, tesão, generosidade, humor, cumplicidade, confiança, estímulo, otimismo, dedicação, o dar-se e a preocupação com o outro. E que viver é como comprar um pacote de viagem: às vezes se fica perdido no meio do caminho. Mas, vá lá, o sofrimento é parte do prazer; e para muitos é aí que reside a graça. Não se culpe se você é linda e perfeita, e atende os padrões de beleza do sabonete Lux. Como a generosidade também é um belo atributo, agradeça a Deus. Cada um à sua maneira, e tão-somente à sua maneira, tem o direito de ser feliz. O Rio de Janeiro é a terra das mulheres mais bonitas deste país, mas, ironia das ironias, ostenta o maior número de solteiras. Sociologia à parte, fico com as fofinhas do sabonete Dove. Mulheres de verdade.

- Norton Ferreira

sábado, 7 de março de 2009

Saramaguiana

Vestiu a calcinha de cor lavanda, cuja parte frontal havia o desenho de uma runa. O símbolo era o do Inguz, que fala da fertilidade: “Vá para dentro de si, para o lugar de observador e assista aos acontecimentos. Libere o passado, deixe ir o que está terminado. Confiante, abra espaços internos e externos para o que virá”, disse-me ela, depois, bem depois. Deu um trago no cigarro, fez um S com a fumaça, e perguntou: “ Já leu Saramago?”. Respondi que sim, entendendo que ela se referia ao romance As intermitências da morte, pois outras discussões saramaguianas já haviam turvado ou clareado nossas conversas.

Lembro-me da vez quando lhe disse que Saramago era um chato, mas que eu odiava gostar dele. Usei o “mas”, em lugar de “e”, para provocar-lhe inquietação. Ela matou mas fez que não matou a charada, e disse que chato era eu, que nunca tinha visto uma runa. Respondi que não, não daquele tamanho. No Ensaio sobre a cegueira, outro livro de Saramago, tem uma frase que ela acha genial, com a qual, como uma broca, ficou perfurando meus ouvidos durante umas três semanas: “A síntese não diz tudo. A síntese é uma deficiência da linguagem” . É..., a frase até que é interessante, mas acho que tem uma defesa, aí, devolvi. Com o charme do seu humor, disse, paulistanamente: “Como assim?, não estou enntennndendo”. Disse-lhe que isso era a defesa de um prolixo, e só por isso o achava chato. “Ah, meu gênio do BBB, meu eterno líder, você está usando uma velha, podre e pobre retórica do futebol: a melhor defesa é o ataque”, disse minha linda vascaína, estalando o elástico do lado esquerdo da calcinha cor-de-lavanda. “Você é fruto e vítima desses tempos, do clip e da clipagem, apesar de estar mais para Dostoiévski. Além do mais, baby, você é publicitário: seu raciocínio não passa dos trinta segundos; mais que isso, para você, é um tormento. Veja que Saramago contorna toda a situação. Como num prisma, o assunto é visto e decupado em vários ângulos; e isso não é para preguiçosos como você”. Nos olhos, o triunfo total. Nunca vi alguém tragar com tanta satisfação: deitada de bruços, os calcanhares triscando um no outro, a fumaça assoviando e a mão direita ligeiramente inclinada para trás. Como é bonito ver piscar e brilhar a inteligência de uma mulher. Uma mulher inteligente faz cócegas no cérebro. Mas o vinagre do meu fígado já havia decantado a resposta: não sei. Só sei que Shakespeare, em Hamlet, diz que “a concisão é a alma do espírito”. Vá brigar com ele. “Você é um chato. Odeio gostar de você”. Riu, estalou mais uma vez a calcinha - agora com as duas mãos -, e foi fazer xixi.

Voltou, agora com uma calcinha branca onde estava estampada a Cruz de Malta, símbolo do nosso Vasco da Gama, que pela situação na qual o time qual está, achei brochante a idéia. Mas, como era para me agradar, ela sabe que eu sei, nem gritei por São Romário. E pensei: é possível que, ainda hoje, eu dê de cara com Fernando Pessoa. E arrematei: já que isso aqui está parecendo uma festa portuguesa, que tal um porção de bolinhos de bacalhau? Ah, amigo, você não sabe como é bom ser chamado de cachorro.


“Caramba, já estou na segunda calcinha, no oitavo cigarro, e você ainda não me disse o que achou d’As intermitências da morte; acho que você não leu, desviou o assunto e pensa que eu esqueci”. Li, sim. “Não leu”. Li, sim. “Não leu...; então fale”. A história tem começo e fim; no meio, Saramago enrola. Mandou alguém fazer um levantamento de tudo o que adviria com as, digamos assim, com as férias da Morte. É como se alguém fosse fazer um trabalho sobre crianças birrentas, mandonas. E dissesse para a secretária: levante tudo o que uma criança poderia fazer, quando lhe tiram um doce; desde o chorar e espernear, até bater na mãe. De posse desses dados, rearranjando os textos, é só fazer o começo e o fim. Mas é um bom livro. Entendeu? “Vou fazer xixi, quando vou a primeira vez...”.

“Continue”, pediu ela, que, para minha surpresa, voltou sem Fernando Pessoa, sem a Cruz de Malta, sem a runa e sem a calcinha.
Disse-lhe que na leitura das Intermitências da morte, encontrei Marcel Proust, Stendhal, Virgínia Woolf e Raul Seixas. E que tinha estranhado a Crítica Literária não ter tocado no assunto. No livro do português, quando a Morte vai visitar o violoncelista, acontece uma virada que é fundamental na história: a Morte bate os olhos num caderno, e recebe o impacto da Suíte número seis, opus mil e doze, em ré maior, de Bach. Ora, em Um amor de Swann - um verdadeiro tratado sobre o
ciúme -, de Proust, ao ouvir um trecho da sonata de Vantuil, Swann, um homem culto e de fino trato, digamos assim, encontra a frase musical que explica seu amor por Odette, uma cortesã; e assim o romance anda. Stendhal, escritor francês mil e oitocentista, gostava também “de se meter nas histórias do outros”, assim como faz Saramago, sem a chatice de Saramago. É só ver O vermelho e o negro. Flush é um cocker spaniel que age e pensa. O violoncelista, da obra de Saramago, tem um cachorro que é chegado a teorias. Flush: memórias de um cão, é obra de Virginia Woolf. “E Raul?, o que é que o maluco tem a ver?”, perguntou ela, se espreguiçando e pedindo para baixar o frio do ar-condicionado. Encontrei Raul quando a Morte se veste e se transforma numa linda mulher, para ir ao teatro, ouvir Bach e, já apaixonada, ver o violoncelista. Lembra-se de ‘canto para minha morte?, de Raul? “Mais ou menos”. Está lá, veja: ‘ Oh morte, tu que és tão forte, que matas o gato, o rato e o homem, vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar, que meu corpo seja cremado e que minhas cinzas alimentem a erva, e que a erva alimente outro homem como eu...’. “É lindo mas é pesado, meu Flush. Nas Intermitências, gostei daquela parte que eles fazem amor duas vezes numa noite. E no dia seguinte não morreu ninguém”. Apague o cigarro.

Norton Ferreira

McDonald's

Uma vida assim, assim como um carro em ponto-morto e torto. Gostava de passarinhos, chão molhado e livros. Cheirinho de roupa lavada e filmes noir: nesses momentos, lembrava-se das Sessões da Tarde, quando a mãe lhe abraçava com bandejas de pipoca com guaraná.

Gostava da pequena casa, agora solteira, no meio do pequeno sítio, no meio do silêncio preenchido por lembranças e bem-te-vis sopranos. Sentia-se protegido; estar na casa era como se estivesse no útero da mãe ou da mulher amada.

Gostava de música: "Eu quero a sorte de um amor tranqüilo/Com sabor de fruta mordida/ Nós na batida, no embalo da rede/ Matando a sede na saliva/Ser teu pão, ser tua comida/ Todo amor que houver nessa vida/E algum trocado pra dar garantia/E ser artista no nosso convívio/ Pelo inferno e céu de todo dia/ Pra poesia que a gente não vive/ Transformar o tédio em melodia/ Ser teu pão, ser tua comida/ Todo amor que houver nessa vida/ E algum veneno antimonotonia/ E se eu achar a sua fonte escondida/ Te alcance em cheio o mel e a ferida/ E o corpo inteiro feito um furacão/ Boca, nuca, mão, e a tua mente/ Não ser teu pão, ser tua comida/Todo amor que houver nessa vida/ E algum remédio que me dê alegria".

Embora solitária e cheia de estrias, a casa era alegre de pensamentos e sentimentos. Paredes cúmplices de vasos vazios. Mas havia goteiras pingando pingos ainda de amor.. Não queria corrigir erros, também gostava deles, eram eles que mostravam alguns acertos. Gostava de lembrar das despedidas, e chorava ao relembrar os reencontros.

Sempre se lembrava do poeta: "A vida é a arte do encontro". Gostava da coleção de gibis, dos super-heróis que durante um bom tempo supriram a ausência do pai.

Gostava de andar na chuva, do cheiro de mato verde, do beijo na virilha dela, doce como sirigüela, da vagina feliz de soluços, do jeito dela pedir, do jeito dela subir, do jeito dela fugir, da camiseta furada que ela usava para dormir, do jeito que ela dizia "morri".

Assim ficava na casa, conferindo a coleção de topadas, abrindo feridas e acariciando cicatrizes.

Um slogan publicitário foi a luz, o relâmpago que a tudo iluminou. Ao ver a frase do McDonald's, disse: "Meu Deus", 'amo muito tudo isso.'

Norton Ferreira

quarta-feira, 4 de março de 2009

terça-feira, 3 de março de 2009

Febre

E essa febre que não passa. Da janela, vejo crianças, meninos e meninas brincando numa poça de sol. Quero minha infância de volta. Não foi para isso que eu nasci. Esse ser sem nexo e sem graça. E essa febre que não passa. “....Pernas de estátua, era fidalga, alva e fina. Eu bebia, como um basbaque extravagante, no tempestuoso céu do teu olhar distante, a doçura que encanta e o prazer que assassina. Brilho... e a noite depois! – Fugitiva beldade de um olhar que me fez nascer segunda vez, não mais te hei de rever se não na eternidade? Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez! Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste. Tu que eu teria amado, ó tu que adivinhaste...”.

E essa febre que não passa, que pula de Baudelaire para Ana Paula Mangeon:
“O verbo ser não se aplica à felicidade. Ninguém é feliz, eu também não sou. O que existe são momentos, aquelas horas em que a vida é mesmo bela e outras em que tudo que se quer é morrer nem que seja um bocadinho. Não sou feliz, mas me sinto vivo e vivendo até mesmo nos momentos em que a melancolia me abraça. E, abraçado assim, apertado, eu choro”. É bom, esse estado, essa febre que não passa. É na febre que tudo faz sentido. Ontem recebi a visita de dois amigos: o anjo mau e o demônio bom. Como presente, o anjo mau deixou esta lição: “Segue o teu destino, a tua sina. Aceita tudo sem brigar com Deus; já recebeste o teu pedaço, que era tudo o que estava reservado para ti. Não há amor sem fé, não há fé sem amor. Enxugue essa testa, não chore alto para não incomodar o mundo. E lembre-se: morre-se mais de ilusão que de amor”. Com essa febre que não passa, respondi citando Renato Russo: “Obrigado, por pensar em mim”.

Pedi água ao meu bom demônio, que transferiu o pedido para o anjo mau. Disse-me ele, meu bom demônio: “Vai, levanta-te, agora!”. Não posso. “Pode, o amor pode tudo. Vai, levanta-te, escreve com a tua própria mão o que vou te dizer. E logo, logo, estes escritos estarão com ela; irei deixar. Põe todo o calor dessa febre, nas palavras que vou te dizer: ‘Ainda carrego você nem que seja para uma ilha no Pacífico. E lá construirei o teu reino, onde todos os golfinhos, baleias e tubarões serão teus súditos. Te banharei com água-de-coco e leite de cabra; todas as flores só viverão para ti, te banhando de perfume e atirando-se ao chão, para você pisar. O sol nascerá e desaparecerá apenas quando você quiser; a lua viverá jogada aos teus pés: só subirá com ordens tuas; a função das borboletas será única e exclusivamente bater palmas para você, além de enfeitar e encher de cor a sua vida; as pedras continuarão silenciosas, numa eterna reverência à tua beleza; quinhentos anjos estarão sempre a postos, para tocar as canções que a minha rainha pedir; do vulcão descerão lavras de ouro, pedras de rubi, esmeraldas resplandecentes, só para encantar a minha doce-rainha. As chuvas serão lágrimas: será o choro do céu se um dia minha eterna rainha ficar triste; os camaleões só mudarão de cor quando minha rainha quiser; serpentes bailarinas dançarão para o seu encanto; na ilha, os papagaios só falarão um único nome, o teu nome. Os mais belos filhos terá a minha rainha, tão belos quanto os filhos das deusas da mitologia grega. Na entrada deste pequeno reino, viveremos com um único mandamento: aqui é permitido ser feliz” . Entreguei, e assim adormeci. E essa febre que não passa.
Essa febre é você.

Musa

Depois, o tudo não era mais tudo, não era mais nada. Era tudo de novo. Por mais adjetivos que se encontrem para definir o que é uma musa, só sabe quem tem. E não pense que só amar é o suficiente para sabê-la. Sempre invejei os poetas que tinham as suas, embora eu não o seja. Musa não se procura, musas aparecem. E ficam. Musa é para sempre, é eterna. Musas causam temporais, quem tem uma está condenado a viver à deriva. Encontrei a minha, e confesso: “Quando o amor era medo, eu achava melhor acordar sozinho”. E o que é que eu queria da minha musa? Que ela furasse o dedo e fizesse um pacto comigo, ora. “ 4 letras é NADA, 4 letras é TUDO, 4 letras é o DEDO que é a língua do mundo. 4 letras, 4 letras. 4 letras eu FICO RICO ou DURO, 4 letras eu picho seu nome no MURO. 4 letras eu DIGO, eu PEÇO, eu FAÇO, 4 letras eu SUBO bem alto e CAIO”.

Minha musa chegou sangrando aberta em pétalas de amor. Uma musa tem algo de belo, de lindo e triste. Tem algo de forte e frágil, de querer e não querer, de fugir e ficar, de eterno e efêmero, de pecado e perdição. Musas são como deuses: quando não se acredita neles, deixam de existir. Meus deuses e minha musa existem. Tanto, que Marte, 60 anos depois, voltou a aproximar-se da Terra só para conhecê-la. Ficou mais vermelho, extasiado, derretendo boa parte de suas geleiras; disse que aquelas águas eram o choro maravilhado diante da beleza do Universo. Perguntei se ele já tinha visto algo igual, ele disse que não, que ela merecia os anéis de Saturno, perfeitos para a mais linda das mulheres, que me daria uma carona para que eu fosse buscá-los. Irei.
Não se assuste, não tenha pena nem inveja de mim: sou lírico, aprendiz de cronista, e, sinceramente, não sei o estrago ou o bem que pode fazer uma musa. Só sei que nada ficou no lugar como era antigamente. Até ontem a vida era um “deserto de saudades”. Uma musa pode saber que é musa? Tanto faz. Não muda nada. Nem que ela mude. Ela é única para um ser único, que é você. E a escolha não foi dela, foi sua mesmo sem ter sido, um dia os mistérios da vida irão lhe explicar. Muitas vidas morrem sem suas musas, outras, renascem com elas. Marisa Monte, Frejat e Carlinho Brown fizeram esta canção para a minha musa, a minha Frida Kalos, a minha Lolita adulta, a minha Beatriz, tenho certeza:

‘Quando madrugar, eu vou estar acordado / Desperto certo de olhos abertos ao seu lado / Eu vou guardar seu sono a noite inteira / Eu vou olhar você, não vou parar de olhar / A noite inteira serei sua sentinela / Vou atravessar a madrugada / Eu vou deixar a luz apagada, só olhando pra você / Olhando pra você, e vendo só você / No escuro e vendo, no escuro e vendo / No escuro e tendo a noite toda pra te ver / Eu vou fechar a cortina / Eu vou abrir a retina devagar / E quando madrugar, eu vou estar acordado / E quando amanhecer, eu vou estar ao seu lado / Desperto, vendo seus olhos fechados / Quando madrugar, eu vou estar acordado / Desperto certo de olhos abertos ao seu lado / Eu vou guardar seu sono a noite inteira”.
Isto posto, eis me aqui. Despido da falsidade, despido de mim mesmo. Minha musa merece ser feliz, é o que desejo. Merece que eu lhe vista com as melhores palavras, aquelas que são embaladas em confeitos de sentimento; para que, se um dia ela provar, devolvam-lhe seu sorriso e olhar de criança. Minha musa é linda, é bela como o primeiro de olhar de timidez dos amantes; minha musa anda em asas de beija-flor, com seus cabelos ao vento, acariciando as nuvens de um coração. Talvez ela jamais saiba, não importa. O que importa é eu saber que passei pela Terra inteiro, agora completado por esse ser. O que importa é saber que ela é Minha. Musa.