quinta-feira, 30 de abril de 2009

Morre o Circo, Vai-se Uma Infância

O leão está faminto, atônito e abandonado. Sua juba já não ostenta mais o penteado digno de um rei. Das lembranças do picadeiro, o silêncio do aplauso borra o sorriso do palhaço. O circo está fechando, e com ele arreia-se de vez a lona colorida da minha infância. A cada dia, a notícia: mais um circo fechou; mais um circo tombou o mastro de uma bandeira que não tremulava mais. Leões, macacos, girafas e elefantes estão sendo largados pelo caminho. Não sabem o que fazer. Olham para nós como crianças abandonadas, querendo uma explicação, querendo mais que comida: querendo saber onde foi que a alegria errou.
Nem ao menos lhes deixaram o endereço do Retiro dos Artistas.

Pelas ruas, o palhaço cantava: “Ô, raia o sol, suspende a lua!” Em coro, respondíamos: “Olha o palhaço no meio da rua!” “Ô raia o sol, suspende a lua!” “Olha o palhaço no meio da rua”.”Hoje tem espetáculo?” “Tem, sim senhor!” “O palhaço o que é?” “É ladrão de mulher!” “O palhaço o que é?” “É ladrão de mulher!” Ô, raia o sol!”... Fazendo o coral, ganhávamos as entradas para o espetáculo. Era um desses circos mambembes, sem a empanada de cima, que andam caçando níqueis pelas cidades do interior. O circo era muito ruim, mas o que a gente queria mesmo era ver as mirradas bailarinas dançando rumba.

Tive uma infância povoada de circo. Circo, cinema, futebol e gibi. Certa vez, pulei a cerca do Ringle Circus. Era um grande circo: lindas trapezistas, globo da morte, atirador de facas, cachorros que jogavam bola, palhaços geniais, mágicos fantásticos e um apresentador – de fraque e cartola – que dizia: “Reeeeesspeitável público!” Sem dinheiro, pulei a cerca do circo, quando fui pego pelo braço por um vigia. Pedi para sair por onde havia entrado. Ele disse que não, que eu tinha que sair pela frente, que era para tomar uma vaia dos que estavam lá fora. Esse era o castigo. Era noite. No caminho, de uma tenda saiu uma voz: “O que foi?” “Peguei esse moleque pulando a cerca”. “Traga ele aqui”. “Por que você pulou?” “Porque minha mãe não tinha dinheiro, e eu queria assistir”. “Quer assistir?” “Quero”. “Então pendure esse fiteiro no pescoço e vá vender essas balas para mim”. E agora?, pensei, o que meus colegas vão dizer de mim? A vergonha não falou mais alto: fui. Queria assistir, e o circo me queria lá dentro.

Terminado o espetáculo, fui prestar contas, vendi um pirulito Zorro e um chiclete
Adams. “Só isso?” “Você pensa que eu não vi você parado?” "Que você passou o tempo todo assistindo ao espetáculo?” “A senhora estava linda. Era a mais bonita de todas elas”, respondi.
Ganhei um beijo na face e a promessa: “Enquanto o circo estiver aqui, você é meu convidado. Todos os dias.”

Norton Ferreira
casadasletras@gamil.com

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