quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

BELEZA QUE NÃO TEM TAMANHO.
Lucas tinha 10 anos. Morava no sítio com os pais, onde ajudava no que podia: tanger os porcos, botar água para os animais e a colher o pouco da lavoura de subsistência. Como não tinha com quem brincar, era comum falar com os animais: “Um dia vou conhecer o mar. Tio Deda falou que vai me levar. Quando eu chegar, eu conto pra vocês”. No frágil cavalo da família, Pirilampo, cinco da manhã Lucas partia sozinho para a escola. Era um bom aluno, e o que mais gostava era de desenhar. Desenhava barreiros e açudes, dizendo que eram o mar. Calado, Lucas só tinha um amigo, um garoto de apelido Jaçanã, com quem Lucas dividia o pouco da infância que tinha para contar. Apesar de tudo, Lucas era esperançoso, dizia que iria se formar e comprar uma fazenda para o seu pai, e que ajudaria Jaçanã, a quem considerava um irmão. “Quando eu conhecer o mar, Jaçanã, vou te contar tudo direitinho. Dizem que é bonito, mas falam, falam e eu não entendo. Mostro meus desenhos, e dizem que não é nada disso. Fico triste, porque não sei o que é o mar. Mas tio Deda prometeu, um dia ele vai me levar para conhecer. Aí você vai ver...”.
Chegou o grande dia, finalmente tio Deda mandou avisar que chegaria à noite, e de manhã partiriam para ele conhecer o tão sonhado mar. Sem dúvida que Lucas não dormiu; o mar já barulhava na sua cabeça. Como era acostumado às quatro da manhã estar de pé, às quatro da manhã já estava arrumado. Uma pequena mochila com pouca coisa: um calção velho, de tecido, uma bermuda e duas camisas, contando com a que ele estava no corpo. Às cinco tio Deda também estava pronto, e partiram. Às seis da tarde chegaram à uma pequena cidade, onde dormiram; mais uma noite de longa espera e aflição para Lucas. Logo cedo enfrentaram mais três quilômetros de caminhada, mata a dentro, que abria e se esparramava em coqueiros até os pés da fileira de grandes dunas. Lucas calado, tio Deda também. Com muito sacrifício subiram uma delas, Lucas afundava na areia, e o sol esquentando. Quando chegaram ao topo, o mar descortinou-se, abriu-se na sua majestosa beleza, como se se Deus tivesse aberto as cortinas do grande teatro da natureza: Lucas olhando............, olhando............., paralisado. Tio Deda deu um tempo, olhando para ele, e perguntou: “E aí, Lucas, gostou? Não é bonito?” – Tio, ajuda a ver, ajuda a ver...
Baseado numa pequena história de Eduardo Galeano, autor de As veias abertas da América Latina.

Amor Para Sempre Amor


É como se sentisse culpada por não mais ostentar a beleza de outros tempos. Irina Sofia, a grande dama dos salões, a mais bela puta de todos os cabarés; que teve os homens que quis, de preferência aos seus pés. Pisava e humilhava. Reis e rainhas se davam por satisfeitos se Irina Sofia lhes dirigisse apenas um olhar; Irina também era amada pelas mulheres, que se faziam de escravas e se submetiam aos seus caprichos amorosos. Sucessora de sua irmã, Mona Sofia, a puta mais bonita que a Renascença já teve. O nome de Irina ecoava por toda a Europa, havendo discussões de qual das duas de fato era a mais bela. A favor de Mona Sofia constava o fato de um diamante ficar pálido diante dos seus olhos; a favor de Irina, dizia-se que “seus seios eram a prova definitiva de que o ser humano é o único animal que chegou à perfeição na face da Terra”, de tão belos. Irina Sofia estava de volta ao seu povoado. Saíra aos 12 anos, para seguir os passos da irmã, e voltava aos 74; só, depois de vagar e mendigar pelos lugarejos. Mona Sofia morreu. Com as marcas do tempo implacável, alojou-se na casa de um irmão, o outro sobrevivente que restava da família, que ela deixara tinha apenas 10 anos. Mal saía, tinha vergonha que lhe vissem naquele estado; sua beleza e seu reinado ainda latejavam na sua cabeça. Estava oca, sugaram-lhe tudo: beleza, sorriso e pensamento, crenças, corpo e convicções, e um resto de vergonha. Uma vez ou outra aguava as plantas do jardim, e raramente ia ao mercado, somente nas ocasiões em que o irmão estava doente, não havia escolha. Irina queria a reclusão, morrer levando a glória e o inferno do seu passado.
Mas havia um namorinho de mocinha, pequenas travessuras; é nessa idade que as juras são definitivas, o mundo é nosso e tudo nós podemos. Aconteceu o que Irina temia, o encontro com Simião, Artur Simião, seu único namoro de infância, e que ainda estava vivo e solteiro, também com 74 anos. Irina passeava os olhos pelo chão, acanhada, tinha vergonha das rugas e da decrepitude do corpo; transformara-se no estandarte do fracasso, o espelho da miséria humana. Não queria isso, esse era o momento a ser evitado; estava sofrida demais, queria morrer em paz, com alguma paz. Trocaram poucas palavras, mas Simião não perdeu tempo: renovou todas as juras de amor de quando criança, e perguntou se ela casaria com ele. Um choque, para Irina Sofia, que saiu apressada. Passaram-se dois meses, e todos os dias Simião ficava no caminho do mercado, esperando encontrá-la mais uma vez. Deu tempo ao tempo, já que esperara até agora, esperaria até o fim da vida. Se negou a ir até à casa de Irina Sofia, que ele sabia muito bem, pois era amigo do seu irmão. Deixou que abrandassem algumas feridas; não sabia direito da sua vida, mas ouvira falar de coisas espantosas.
Mais uma vez a vida colocou Simão no caminho de Irina Sofia. Ou o próprio Simião tratou de fazer isso, pois esse passou a ser o seu objetivo final. Irina ainda tentou desviar, mas já era tarde. E ficaram os dois, em silêncio. Irina Sofia ainda passeava os olhos pelo chão, mas, mesmo assim, passado o impacto do primeiro encontro, de vez em quando conseguia encarar Simião, olhar nos olhos: “Não quero mais nada da vida. Já estou morta. Me deixe em paz. Deixe-me com meu passado e a minha dor. Desapareça". Simião insistiu, se preparou para aquele momento, e falou tudo o que falara no passado, em especial o amor eterno, que viveriam juntos para sempre os dias que ainda lhes restavam. Que não era justo abrir mão da felicidade enquanto ainda restava pelo menos um fio de sangue e de esperança; que o coração ainda batia forte, que ela continuava linda, conservara os traços daquela bela menina. Que sabia que um dia ela iria voltar; puxou do bolso um pedaço de cabelo que ela lhe dera de presente quando criança; no mesmo pequeno pacote, um bilhete onde estava escrito: “Simião, minha paixão”. Por último, mostrou uma aliança, de metal barato, que os dois usavam só nos encontros, e brincavam de marido e mulher. Irina chorava, tremia, aflita e sem saber o que dizer. No desespero, saíram essas palavras: “Prove que você não me abandonará. Que ficará comigo para sempre. Prove. Prove. Agora". Simião, tranquilo por finalmente tê-la consigo, e por saber que não deixaria escapar o amor da sua vida, chamou a charrete, e fez sinal para que ela subisse. Lá dentro, os dois, o cocheiro perguntou: “Para onde, senhor?”. – Até aonde o mundo der. Para sempre.