quinta-feira, 30 de abril de 2009

Fora dos Trilhos

E foi assim: sentimentos despedaçados por todos os lados, projetos compartilhados num futuro que esbagaçou-se alí, no trem do amor descarrilado que o destino não quis apitar na próxima estação. Um coração desengatou-se do outro. Mas restava a lembrança do amor ainda nos trilhos, do vagão alegre que só trepidava nas horas mais felizes, pintado com o calor do vinho, ao som de Fuck this shit, de Belle & Sebastian.

Tinha de recompor o vagão; não foi fácil mas assim o fez. No primeiro teste, notou que as rodas da paixão ficaram meio tortas, cambaleantes como um andar de criança; que o apito anunciando um amor igual aquele soou fraco, era um sopro. Chegaria à próxima estação? Ou, pior, havia próxima estação? Gostava daquele jeito Madame Bovary de ser: meio fútil, meio inteligente; meio puta, meio senhora; meio desinteressada, absolutamente interesseira; meio racional mas totalmente sonhadora. E definitamente linda.

Norton Ferreira
casadasletras@gmail.com

Morre o Circo, Vai-se Uma Infância

O leão está faminto, atônito e abandonado. Sua juba já não ostenta mais o penteado digno de um rei. Das lembranças do picadeiro, o silêncio do aplauso borra o sorriso do palhaço. O circo está fechando, e com ele arreia-se de vez a lona colorida da minha infância. A cada dia, a notícia: mais um circo fechou; mais um circo tombou o mastro de uma bandeira que não tremulava mais. Leões, macacos, girafas e elefantes estão sendo largados pelo caminho. Não sabem o que fazer. Olham para nós como crianças abandonadas, querendo uma explicação, querendo mais que comida: querendo saber onde foi que a alegria errou.
Nem ao menos lhes deixaram o endereço do Retiro dos Artistas.

Pelas ruas, o palhaço cantava: “Ô, raia o sol, suspende a lua!” Em coro, respondíamos: “Olha o palhaço no meio da rua!” “Ô raia o sol, suspende a lua!” “Olha o palhaço no meio da rua”.”Hoje tem espetáculo?” “Tem, sim senhor!” “O palhaço o que é?” “É ladrão de mulher!” “O palhaço o que é?” “É ladrão de mulher!” Ô, raia o sol!”... Fazendo o coral, ganhávamos as entradas para o espetáculo. Era um desses circos mambembes, sem a empanada de cima, que andam caçando níqueis pelas cidades do interior. O circo era muito ruim, mas o que a gente queria mesmo era ver as mirradas bailarinas dançando rumba.

Tive uma infância povoada de circo. Circo, cinema, futebol e gibi. Certa vez, pulei a cerca do Ringle Circus. Era um grande circo: lindas trapezistas, globo da morte, atirador de facas, cachorros que jogavam bola, palhaços geniais, mágicos fantásticos e um apresentador – de fraque e cartola – que dizia: “Reeeeesspeitável público!” Sem dinheiro, pulei a cerca do circo, quando fui pego pelo braço por um vigia. Pedi para sair por onde havia entrado. Ele disse que não, que eu tinha que sair pela frente, que era para tomar uma vaia dos que estavam lá fora. Esse era o castigo. Era noite. No caminho, de uma tenda saiu uma voz: “O que foi?” “Peguei esse moleque pulando a cerca”. “Traga ele aqui”. “Por que você pulou?” “Porque minha mãe não tinha dinheiro, e eu queria assistir”. “Quer assistir?” “Quero”. “Então pendure esse fiteiro no pescoço e vá vender essas balas para mim”. E agora?, pensei, o que meus colegas vão dizer de mim? A vergonha não falou mais alto: fui. Queria assistir, e o circo me queria lá dentro.

Terminado o espetáculo, fui prestar contas, vendi um pirulito Zorro e um chiclete
Adams. “Só isso?” “Você pensa que eu não vi você parado?” "Que você passou o tempo todo assistindo ao espetáculo?” “A senhora estava linda. Era a mais bonita de todas elas”, respondi.
Ganhei um beijo na face e a promessa: “Enquanto o circo estiver aqui, você é meu convidado. Todos os dias.”

Norton Ferreira
casadasletras@gamil.com

domingo, 26 de abril de 2009

Sonho de Valsa

“Se alguém de repente lhe oferecer flores, isso é Impulse”. Gosto desta frase, é um bom trocadilho, mas não sei por que iniciei esta viagem com ela. Talvez, ao chegar ao destino, encontre a razão. Divide-se casa, emprestam-se livros, compartilham-se discos, reparte-se comida, emprestam-se carros. Mas, se ela nunca dividiu um Sonho de Valsa com você, começo a duvidar dessa relação.
Não vale Chokito, Batom, Diamante Negro ou Prestígio, tem de ser Sonho de Valsa.

Há estudos que dizem que o prazer que uma mulher sente, ao comer um chocolate, é semelhante a um orgasmo. Uma festa no cérebro provocada pela cópula luxuriosa entre a serotonina e a endorfina. Coisa que nem toda mulher está disposta a dividir com seu amado, em se tratando de um Sonho de Valsa. É um prazer só seu, e você seria um intruso; você teria que ser mais que um reles penetra para poder gozar essa valsa.

Algumas mulheres ficam em êxtase, zonzas, zarolhas diante de um Sonho de Valsa. Que magia é essa, que mistério é esse?. Há uma música de Alceu Valença, que diz “comemos juntos Sonhos de Valsa...” Veja o quanto há de cumplicidade nesta frase. Acho a cumplicidade uma coisa bacana, calma, é o amor suspenso e amarrado nos laços da ternura, do bem-querer, do querer ser só um; ao sabor dos vendavais da paixão. Quem junto comeu um Sonho de Valsa, come até o pão que o Lula amassou e vai amassar mais ainda.

Dividir um Sonho de Valsa é a mais singela e honesta declaração de amor, acredite. Estou falando em dividir, e não em ter dois e dar um. Não tem graça. O que vale é a mordida que ela deixa você dar no pedacinho dela. O resto é varejo, é conseqüência, o fogo desceu, o sino tocou, a igreja se abriu, os anjos disseram amém; só lhe resta ajoelhar-se e não pedir perdão, você tem direito ao pecado não-permitido.

O ideal é que você não peça, que não force a barra; deixe o amor brotar naturalmente de dentro de um Sonho de Valsa. Quando isso acontecer, concedo-lhe o direito de rolar uma lágrima, que ela desça até à sua boca, que o gosto salgado invada os lábios da sua amada. Ela irá entender, ela irá gostar: porque, se ela repartiu um Sonho de Valsa com você, é porque ela também quer seu sal. É a cumplicidade da qual falei. Deixe acontecer. Deixe que seja por "Impulse."

Norton Ferreira
casadasletras@gmail.com

domingo, 12 de abril de 2009

Talvez

Comprei um arco-íris novinho em folha. Pintei meu céu com as cores de uma felicidade que tomei emprestada. Roubei flores que não pediram para ser roubadas. As partículas no ar seguravam lágrimas condensadas. Tudo porque acreditei num beija-flor que me disse haver no final do arco-íris um pote de ouro; que se eu tivesse sorte, uma bela fada me deixaria ver seu rosto. Não havia ouro, só um pote vazio. Era só isso o que eu queria; a vida inteira, era só o que eu queria: um pote mágico, vazio de inveja, vazio de soberba, vazio de pecados, vazio de nada. Um pote apenas cheio si, cinza brilhante como prata, onde joguei minha falsa alegria, os amores amados negados, a esperança tardia, o encardido olhar do horizonte morrido. Enterrei-o novamente, com calma, com grãos de areia peneirados entre os dedos. Na cabeça, um filme; no vazio, um coração.

A fada apareceu. Zombou do meu céu, ridicularizou meu arco-íris, matou as flores mortas e quebrou meu pote cheio de vazio de mim. Outra fada apareceu, num outro lugar e tempo, que deixou-me ver seu rosto, que me presenteou com o mais belo sorriso, que vinha de ternura embalando seu olhar, que viva rosa vermelha me deu, sem espinho. Rosa comprada na noite, dos vendedores que perambulam por mesas e ilusões. Mas... cadê o espinho? No meu pote enterrei meu peito, que também quer seu espinho, que fará jorrar meu sangue, vermelho de amor e dor. A rosa exalou você, que é linda em rosa, botão e flor. Uma redoma, em meu coração, lhe conservará para sempre.

Era para ser um poema, mas, agora, algo me pede uma despedida. Que seja. Sinto que tenho de ir, mesmo sem saber para onde, mas tenho de ir; e jamais saberei se você virá. Na verdade, foi tão real que nem sei se você existiu. Não importa. Minha alma precisava desse fantasma, precisa dessa companhia.
Agarro-me a Drummond: “O que é ser feliz? O que eu queria ontem, o que eu quero hoje, ou que eu quero amanhã”? Talvez haja aí uma esperança, um buraco negro; mas é uma esperança, que meu bom fantasma não irá espantá-la.
Não vou dizer adeus, não vou dizer até logo, não tenho o tempo preso em minhas mãos. Tudo é talvez. Talvez eu nem escreva mais neste Sanatório, talvez. Só para você não saber como estou, talvez. Talvez eu escreva uma crônica por dia, só para dizer o que você já sabe, talvez. “Te ver, e não te querer, é improvável, é impossível”. Talvez.

Norton Ferreira
casadasletras@gmail.com