sábado, 7 de março de 2009

Saramaguiana

Vestiu a calcinha de cor lavanda, cuja parte frontal havia o desenho de uma runa. O símbolo era o do Inguz, que fala da fertilidade: “Vá para dentro de si, para o lugar de observador e assista aos acontecimentos. Libere o passado, deixe ir o que está terminado. Confiante, abra espaços internos e externos para o que virá”, disse-me ela, depois, bem depois. Deu um trago no cigarro, fez um S com a fumaça, e perguntou: “ Já leu Saramago?”. Respondi que sim, entendendo que ela se referia ao romance As intermitências da morte, pois outras discussões saramaguianas já haviam turvado ou clareado nossas conversas.

Lembro-me da vez quando lhe disse que Saramago era um chato, mas que eu odiava gostar dele. Usei o “mas”, em lugar de “e”, para provocar-lhe inquietação. Ela matou mas fez que não matou a charada, e disse que chato era eu, que nunca tinha visto uma runa. Respondi que não, não daquele tamanho. No Ensaio sobre a cegueira, outro livro de Saramago, tem uma frase que ela acha genial, com a qual, como uma broca, ficou perfurando meus ouvidos durante umas três semanas: “A síntese não diz tudo. A síntese é uma deficiência da linguagem” . É..., a frase até que é interessante, mas acho que tem uma defesa, aí, devolvi. Com o charme do seu humor, disse, paulistanamente: “Como assim?, não estou enntennndendo”. Disse-lhe que isso era a defesa de um prolixo, e só por isso o achava chato. “Ah, meu gênio do BBB, meu eterno líder, você está usando uma velha, podre e pobre retórica do futebol: a melhor defesa é o ataque”, disse minha linda vascaína, estalando o elástico do lado esquerdo da calcinha cor-de-lavanda. “Você é fruto e vítima desses tempos, do clip e da clipagem, apesar de estar mais para Dostoiévski. Além do mais, baby, você é publicitário: seu raciocínio não passa dos trinta segundos; mais que isso, para você, é um tormento. Veja que Saramago contorna toda a situação. Como num prisma, o assunto é visto e decupado em vários ângulos; e isso não é para preguiçosos como você”. Nos olhos, o triunfo total. Nunca vi alguém tragar com tanta satisfação: deitada de bruços, os calcanhares triscando um no outro, a fumaça assoviando e a mão direita ligeiramente inclinada para trás. Como é bonito ver piscar e brilhar a inteligência de uma mulher. Uma mulher inteligente faz cócegas no cérebro. Mas o vinagre do meu fígado já havia decantado a resposta: não sei. Só sei que Shakespeare, em Hamlet, diz que “a concisão é a alma do espírito”. Vá brigar com ele. “Você é um chato. Odeio gostar de você”. Riu, estalou mais uma vez a calcinha - agora com as duas mãos -, e foi fazer xixi.

Voltou, agora com uma calcinha branca onde estava estampada a Cruz de Malta, símbolo do nosso Vasco da Gama, que pela situação na qual o time qual está, achei brochante a idéia. Mas, como era para me agradar, ela sabe que eu sei, nem gritei por São Romário. E pensei: é possível que, ainda hoje, eu dê de cara com Fernando Pessoa. E arrematei: já que isso aqui está parecendo uma festa portuguesa, que tal um porção de bolinhos de bacalhau? Ah, amigo, você não sabe como é bom ser chamado de cachorro.


“Caramba, já estou na segunda calcinha, no oitavo cigarro, e você ainda não me disse o que achou d’As intermitências da morte; acho que você não leu, desviou o assunto e pensa que eu esqueci”. Li, sim. “Não leu”. Li, sim. “Não leu...; então fale”. A história tem começo e fim; no meio, Saramago enrola. Mandou alguém fazer um levantamento de tudo o que adviria com as, digamos assim, com as férias da Morte. É como se alguém fosse fazer um trabalho sobre crianças birrentas, mandonas. E dissesse para a secretária: levante tudo o que uma criança poderia fazer, quando lhe tiram um doce; desde o chorar e espernear, até bater na mãe. De posse desses dados, rearranjando os textos, é só fazer o começo e o fim. Mas é um bom livro. Entendeu? “Vou fazer xixi, quando vou a primeira vez...”.

“Continue”, pediu ela, que, para minha surpresa, voltou sem Fernando Pessoa, sem a Cruz de Malta, sem a runa e sem a calcinha.
Disse-lhe que na leitura das Intermitências da morte, encontrei Marcel Proust, Stendhal, Virgínia Woolf e Raul Seixas. E que tinha estranhado a Crítica Literária não ter tocado no assunto. No livro do português, quando a Morte vai visitar o violoncelista, acontece uma virada que é fundamental na história: a Morte bate os olhos num caderno, e recebe o impacto da Suíte número seis, opus mil e doze, em ré maior, de Bach. Ora, em Um amor de Swann - um verdadeiro tratado sobre o
ciúme -, de Proust, ao ouvir um trecho da sonata de Vantuil, Swann, um homem culto e de fino trato, digamos assim, encontra a frase musical que explica seu amor por Odette, uma cortesã; e assim o romance anda. Stendhal, escritor francês mil e oitocentista, gostava também “de se meter nas histórias do outros”, assim como faz Saramago, sem a chatice de Saramago. É só ver O vermelho e o negro. Flush é um cocker spaniel que age e pensa. O violoncelista, da obra de Saramago, tem um cachorro que é chegado a teorias. Flush: memórias de um cão, é obra de Virginia Woolf. “E Raul?, o que é que o maluco tem a ver?”, perguntou ela, se espreguiçando e pedindo para baixar o frio do ar-condicionado. Encontrei Raul quando a Morte se veste e se transforma numa linda mulher, para ir ao teatro, ouvir Bach e, já apaixonada, ver o violoncelista. Lembra-se de ‘canto para minha morte?, de Raul? “Mais ou menos”. Está lá, veja: ‘ Oh morte, tu que és tão forte, que matas o gato, o rato e o homem, vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar, que meu corpo seja cremado e que minhas cinzas alimentem a erva, e que a erva alimente outro homem como eu...’. “É lindo mas é pesado, meu Flush. Nas Intermitências, gostei daquela parte que eles fazem amor duas vezes numa noite. E no dia seguinte não morreu ninguém”. Apague o cigarro.

Norton Ferreira

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