segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Barbie

Minha Barbie chegou chorosa, a hora do almoço havia sido um horror, com o seu donatário acusando-a de andar distante, pensativa; fora surpreendida em risos aéreos e flagrada em esquecimentos inadmissíveis, além de dois meses e sete dias numa mau simulada greve de sexo. "O ciúme sabe mais que a verdade", diz Gabriel García Márquez, em Memória de Minhas Putas Tristes. Eu digo que a mulher nega afirmando e afirma negando. Chegou chorosa, minha Nick, mas radiante com a vida querendo viver; os castiçais se curvaram e a tarde se avermelhou diante da sua beleza. Num ar de cumplicidade, vi quando lá da parede a Mona Lisa lhe piscou o olho, alargando um pouco mais o seu enigmático sorriso. Todo homem deveria ter o olhar dos amantes.

Ficamos abraçados por um bom tempo, balbuciando coisas e tramando deliciosas besteiras. Minha Barbie desgarrou-se de mim e saiu apagando luzes e acendendo outras; gostava de fazer o ambiente, de preparar a luz, como se faz no cinema. Acendeu incensos, trocou a música, mudou almofadas, me deu um beijo; ligou o ar, tirou a blusa, me deu um beijo; abriu uma cerveja, o celular tocou, desligou o celular, soltou o cabelo, tomou um gole, me deu um beijo; levantou-se, pegou uma taça, pegou um vinho, servi sua taça, ganhei um beijo, ganhei um beijo. Não há cena mais linda do que uma mulher com uma presilha na boca preparando-se para prender o cabelo. Ah, Nick..., saudades desse olhar mortiferamente enviesado. Pegou a toalha, tomou outro gole, ganhei um beijo.

Voltou do banho mas não veio nua, teve o pudor e o cuidado de manter sua pulseirinha. Aproximou-se e disse "Vá tomar seu banho, quero brincar com este vinho em você." Nesta hora, Chico, o Buarque, cantava: "Não se avexe não, que nada é pra já, o amor não tem pressa, a vida pode esperar...". Fui para o banho e voltei para o sacrifício; lembro-me bem das primeiras gotas do suave veneno escorrendo pelas goteiras da minha pestana. O Sol conspirou fugindo mais cedo, e tivemos que nos despedir, com direito a lágrimas e a promessas que nunca irão se cumprir.

Quando tudo não era mais nada, voltei para o quarto, e me assustei com o que vi. Não, eu não acreditava que havia estado alí. Me perguntei: meu Deus, o que é isto? Na cama, o lençol como um oceano branco exibia algumas marolas e pequenos redemoinhos; na cabeceira, uma garrafa de cor verde fora largada e repousava suavemente o pescoço num dos travesseiros amarfanhados de luxúria e paixão. Fiquei ali, querendo entender a beleza daquela cena. A campainha tocou, fui atender. Como um espectro, o doutor Barbie estava diante de mim. Tudo bem, pode atirar, lhe disse, mas antes venha aqui, por favor. Me diga o que é isto, e lhe apontei a cena do outro crime: aquele oceano branco, as marolinhas no lençol, os redemoinhos embriagados, a inocência no singelo sono da garrafa... É Gaugin!, é Gaugin!!, isto é arte!, disse ele.Isto é um quadro de Paul Gaugin!!!.

Norton Ferreira
casadasletras@gmail.com

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